Primeiramente, antes de examinarmos os aspectos cíveis do estudo de caso é necessário explicarmos o instituto da posse e suas diferenciações com o da propriedade. Comum é uma confusão entre a posse e a propriedade, porém se trata de institutos jurídicos diferentes. Nem todo proprietário é possuidor direto e nem todo possuidor é proprietário.
O ordenamento jurídico brasileiro utiliza-se da teoria objetiva de Ihering quanto a posse que a define como “corpus”, que consiste em contato físico com a coisa mais conduta de dono. Desse modo explica Gonçalves “A posse, então, é a exteriorização da propriedade, a visibilidade do domínio, o uso econômico da coisa”. (Pág. 21). A natureza jurídica é “sui generis” . O direito à posse pode ser fundamentado na jus possessionis ou posse formal que consiste em uma situação possessória independente e sem um vínculo jurídico anterior, ou na jus possidendi ou posse causal, que é aquela que decorre de uma relação negocial da qual se transmite alguns dos poderes de propriedade .
A propriedade por sua vez, trata-se de um Direito Real, o núcleo de todos os demais direitos reais. É a relação jurídica entre uma pessoa e um bem que lhe possibilita a faculdade de usar, gozar, dispor de acordo com o estabelecido em lei e reavê-la de qualquer um que a detenha ou possua injustamente. Dentre as formas de aquisição da propriedade o que nos vale nesse cenário é o da usucapião.
Possuidor é todo aquele que exerce, em nome próprio, de forma plena um dos poderes inerentes à propriedade, podendo exercer contra terceiro a defesa de sua posse. Tais poderes da propriedade estão dispostos no art. 1.228 do código civil, que são “[...] a faculdade de usar, gozar e desfrutar da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
A posse pode ser caracterizada como justa ou injusta sendo “[...] justa a posse que não é violenta, clandestina ou precária”. (Art. 1.200 do CC). o vício da violência ocorre com o esbulho possessório realizado por meio de coação física ou moral, retirando o legítimo possuidor à força de seu direito. Já a clandestinidade é quando de forma sorrateira, discreta e às ocultas, priva outrem do exercício possessório. Tanto a clandestinidade quanto a violência só são transmutadas em posse injusta após cessadas seus efeitos, pois enquanto perdurarem se fala em detenção.
O último dos vícios previstos no dispositivo supracitado é uma precariedade, ou abuso de confiança. Eis aqui uma hipótese que subsome-se ao estudo de caso. Jurandir, enquanto executava seu contrato de trabalho na Fazenda Oliveira como cuidador da matriarca de 95 anos, não era possuidor mas sim, mero detentor. Nesse sentido dispõe o Código Civil “Não induzem posse dos atos de mera permissão [...]”. (Art. 1.208, primeira parte). No entanto com o findar de seu contrato de trabalho pelos herdeiros, o ex-empregado que não se retira do imóvel se torna o esbulhador por meio do denominado esbulho pacífico.
Nesse sentido, a extinção do contrato de trabalho Carlos Roberto Gonçalves exemplifica: "Também caracteriza o esbulho a alteração do ânimo do mero detentor, que se opõe ao possuidor anterior, recusando-se a restituir a coisa, como na hipótese do caseiro que, abusando da confiança de que ele foi depositado, toma a coisa para si, recusando-se a devolvê-la ao proprietário, ou possuidor anterior". (GONÇALVES, 2023, p.38).
Portanto, Jurandir é um possuidor injusto por conta da posse eivada do vício da precariedade e da má-fé, visto que não ignora o vício que comete a coisa, muito menos a ausência de justo título por sua parte.
É de extrema importância a caracterização da má-fé, pois isso terá implicações nas indenizações das benfeitorias, frutos e da perda ou deterioração da coisa. No caso hipotético o injusto possuidor arrendou partes da terra recebendo os frutos civis decorrentes desta relação jurídica com o arrendatário, além disso após insistência dos herdeiros para que se retirassem da posse do imóvel, Jurandir danificou seriamente as paredes da casa. Realizou também benefícios para aumentar a área de plantio de soja, dando um acréscimo ao uso do bem.
Quanto aos frutos civis oriundos do arrendamento, deverá indenizar aos herdeiros todos os percebidos desde que se constituiu possuidor de má-fé. Assim, dispõe o Código Civil “O possuidor de má-fé responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em que se constituiu de má-fé[...]”. (Art. 1.216). Jurandir terá direito de ser ressarcido pelo os custos de produção, porem como não cultivou pessoalmente a terra, não há falar nesse ressarcimento.
O esbulhador também responderá pela deterioração da coisa, da qual agiu dolosamente. Por ter dolo não poderá ser beneficiado pelo dano em caso fortuito, mesmo que provasse que ocorreria o mesmo se a coisa estivesse com legitimo possuidor. Ante a má-fé responderia mesmo que tivesse deteriorado a coisa culposamente, conforme o Art. 1218 do Código Privado.
No que tange as benfeitorias, somente será ressarcido da pintura do imóvel, visto que consiste em uma benfeitoria necessária, desde que ainda exista no momento que entregar a posse ao legitimo possuidor. Além disso, a benfeitoria útil, consistente no aumento da plantação de soja, não será ressarcida. E quanto a tais ressarcimentos dispõe o Código Civil “Art. 1.220. Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias; não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias”.
A usucapião é uma modalidade de aquisição originaria da propriedade, seja ela móvel ou imóvel. Trata-se da ruptura do direito de propriedade prevista em lei, pela posse de um terceiro, que a exerce de forma mansa e pacifica por um determinado período de tempo. Tal modalidade de aquisição ocorre na posse ad usucapionem. Existem diversas espécies de usucapião, cada uma com suas particularidades e aplicações próprias, dentre as quais temos: extraordinária; ordinária; especial ou constitucional, dividindo-se em rural e urbana; indígena; administrativa e extrajudicial.
No estudo de caso em questão, o que nos cabe é o estudo da usucapião extraordinária. Partindo do princípio de que Jurandir continuasse na posse da fazenda a ponto de adquirir o domínio pela prescrição aquisitiva, ele deveria seguir certos requisitos previstos no art. 1.238 do Código Civil, que são:
Preenchido os requisitos supramencionados, Jurandir poderia requerer ao juiz que declare sua usucapião, que servirá para registrar o imóvel no cartório de registro. No entanto, não é o caso de Jurandir, visto que possui apenas 3 anos de posse injusta e de má-fé, características irrelevantes na modalidade extrajudicial, porém sendo inaplicável a ele, por conta da curta duração da posse.
Tanto a posse quanto a propriedade gravitam o princípio da função social. A Constituição da Republica Federativa do Brasil em seu art. 5º, inciso XXIII dispõe que "a propriedade atenderá a sua função social”, consagrando tal princípio. Logo, a posse também se aplica esse entendimento, é a chamada posse-trabalho, se o individuo ao exercer um dos atributos da propriedade também deve observar seu fim social e econômico, bem como seu aspecto ambiental.
Por sua vez o exercício do direito de propriedade também sofre a ocorrência da socialidade, pois "[...] deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas".(Art. 1.228, § 1º do Código Civil).
Notória é a importância da Função Social da Propriedade, pois, por mais que o ser humano tenha impulsos individualistas e ações egoísticas a vida em sociedade é inevitável, Homo est naturaliter politicus, id est, socialis. O direito busca amenizar tal fato, e desse modo cria mecanismos que possibilite a felicidade comum, visto que não há busca maior pelo homem do que a boa vida. Nesse cenário emerge o princípio da socialidade, em que o interesse da sociedade deve sobrepor o interesse individual. Não se trata de desconsiderar todo os direitos individuais, cada ser é um universo em si mesmo e suas particularidades devem e serão respeitadas, o que não pode-se permitir é a obstrução da paz social ante as aspirações egoístas de um único indivíduo.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
Gonçalves, Carlos Roberto. Direito civil, v.2. São Paulo: Saraiva Jur, 2023.
Tartuce, Flávio. Manual de direito civil, volume único. Rio de Janeiro: Método, 2023.
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